Brasil: a luta da Defensoria Pública em meio à crise

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Patrick Cacicedo é Defensor Público em São Paulo, Doutor pela Universidade de São Paulo e pesquisador em matéria prisional. Nesse texto, Patrick reflete sobre o trabalho da Defensoria Pública durante a crise sanitária e a situação alarmante das prisões brasileiras.

O sistema prisional brasileiro nunca foi um exemplo de boas práticas humanitárias, mas a situação piorou consideravelmente nos últimos anos. O aumento avassalador da população prisional do país contribuiu de maneira determinante para esse quadro: em três décadas o número de presos saltou de 90.000 para 900.000. O principal resultado do encarceramento em massa brasileiro foi o agravamento na superlotação dos presídios, cujo déficit de vagas é superior a 300.000.

Com percentual de superlotação prisional na casa de 170%, a piora nas condições de aprisionamento era um resultado previsível. Em trinta anos, as más condições de vida nas prisões se converteram em catástrofe humanitária. As violações aos direitos humanos são de toda ordem: péssimas condições de saúde, escassas vagas para estudo e trabalho, violência, racionamento de água e alimentação, dentre outros problemas de semelhante gravidade.

Covid-19 nas prisões, uma tragédia anunciada

À emergência humanitária das prisões somou-se a emergência sanitária da Covid-19, cuja medida básica de contenção é o distanciamento social, incompatível com as prisões brasileiras, quase todas compostas por celas coletivas. O ambiente fechado das prisões, por si só propício para a proliferação do vírus, se agrava ainda mais em razão das condições específicas da vida carcerária brasileira: superlotação, falta de equipes mínimas e programas de saúde, racionamento de água e fornecimento precário de produtos de higiene.

A tragédia que se anunciava motivou a pressão da Defensoria Pública e de organizações não governamentais de direitos humanos para que o poder público tomasse medidas eficazes para evitar o risco de morte nas prisões. Ocorre que, ao contrário de medidas tomadas em outros países - como solturas antecipadas para pessoas dos grupos de risco, programas de saúde preventivos, prioridade na vacinação, por exemplo – no Brasil prevaleceu a inércia, inclusive na realização de exames para detecção do vírus.

A gestão de enfrentamento da pandemia no Brasil é notoriamente reconhecida como uma das piores do mundo, especialmente pelo negacionismo propagado pelo Presidente da República. Com efeito, a negação ou minimização da gravidade da doença foi a maior marca do governo em relação à pandemia do coronavírus. Ela se concretizou, dentre outras medidas, com o boicote às ações preventivas, subnotificação dos dados epidemiológicos, incentivo a tratamentos terapêuticos sem validação científica, ausência de estratégias nacionais de saúde e, na maior parte do tempo, a tentativa de retirar credibilidade da vacina. O negacionismo não foi diferente em relação aos presídios, especialmente em relação à falta de testes para detectar o vírus na população prisional e, com isso, negar a urgência e gravidade do problema.

Reações do Judiciário

Sem medidas concretas dos Poderes Executivo e Legislativo, o Poder Judiciário concentrou as demandas individuais e coletivas de tutela de direitos dos presos, sobretudo levadas pela Defensoria Pública. Tais demandas foram fundadas na única medida significativa levada a efeito para o enfrentamento da pandemia no sistema prisional: a Recomendação n. 62, de março de 2020, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Através desse documento, o CNJ recomendou aos juízes a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus no âmbito dos sistemas de justiça penal e juvenil, como, por exemplo, a reavaliação das prisões provisórias e a concessão de saída antecipada para determinados grupos de risco citados no documento.  

A medida, que se mostrou alvissareira logo após sua edição, revelou prontamente sua fragilidade: a recomendação não tem efeito vinculante e não gerou maiores impactos na vida prisional. Salvo exceções pontuais, os juízes ignoraram a recomendação e, inclusive, a população prisional brasileira cresceu durante a pandemia. Até mesmo a Suprema Corte brasileira negou em massa pedidos de liberdade fundados na recomendação do próprio CNJ.

A maioria desses milhares de pedidos foram veiculados por habeas corpus impetrados por defensores públicos. A via coletiva do habeas corpus também foi utilizada por mais de uma vez: idosos, mulheres grávidas, pessoas do grupo de risco para a Covid. A Suprema Corte, contudo, negou a possibilidade de tais pessoas cumprirem pena em prisão domiciliar. Foram excepcionais os casos acatados pelos tribunais brasileiros.

O que revelam as inspeções da Defensoria

A luta da Defensoria Pública não se restringiu aos pedidos de liberação de pessoas do grupo de risco. Em São Paulo, estado que concentra quase um terço da população prisional brasileira, a Defensoria Pública ajuizou ações para implantação de equipes mínimas de saúde nos presídios e também para instalação de telefones públicos e organização de visitas virtuais. Além disso, instou o Presidente da República para que concedesse indulto humanitário a pessoas do grupo de risco. De todas essas medidas, apenas as visitas virtuais foram realmente implementadas.

Outra atividade desenvolvida pela Defensoria Pública de São Paulo foram inspeções de monitoramento em diversos presídios, muitas vezes a partir de denúncias de familiares de presos. Vinte e uma prisões foram inspecionadas e o levantamento de dados das quatorze primeiras revelou que:
a) a prisão com menor taxa de superlotação tinha 122% de ocupação e a com maior apresentava 230%;
b) 86% das unidades racionava o fornecimento de água, sendo que uma delas não fornecia água havia cinco dias;
c) o fornecimento de produtos de higiene era precário e em 31% das prisões os presos relataram que nunca receberam tais produtos;
d) todas as unidades inspecionadas fornecem apenas três refeições diárias, de baixo valor nutricional, e há 13 horas de diferença entre a última refeição de um dia e primeira do outro;
e) a insalubridade é generalizada, há pouca iluminação e ventilação nas celas;
f) nenhuma prisão possui equipe de saúde completa e quatro delas não há qualquer atendimento por médico.

Um apelo urgente à mudança

Mesmo diante desses casos, a postura do poder público brasileiro segue negacionista. A inércia das autoridades nacionais levou a Defensoria Pública de São Paulo a requerer audiência temática junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos com o objetivo de expor a realidade das prisões brasileiras na pandemia e instar o Estado brasileiro a prestar esclarecimentos.

O apelo internacional indica novas possibilidades de mudança do quadro apresentado, muito embora não falte constrangimento internacional ao governo brasileiro no trato da pandemia. Somos o pior modelo de gestão da pandemia dentro e fora das prisões. Dentro deste contexto, as desigualdades se amplificaram e a violação de direitos se tornou ainda mais aguda. Mais do que urgente, a mudança é vital. A Defensoria Pública segue na luta.

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