Tailândia: criminalização desproporcional da metanfetamina, uma cruzada moral fracassada

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Pascal Tanguay é consultor independente e vive na Tailândia há 17 anos. De 2011 a 2015, Pascal trabalhou como vice-diretor da Law Enforcement e HIV Network e dirigiu o plano nacional para prevenir o HIV entre pessoas usuárias de drogas injetáveis na Tailândia. Ele continua a apoiar organizações da sociedade civil, governos e agências das Nações Unidas com uma abordagem para a política de drogas na Ásia baseada em dados concretos e nos direitos humanos. Nesse texto, Pascal discute a criminalização desproporcional de delitos relacionados à metanfetamina na Tailândia e suas consequências.

Em 2010, uma jovem foi condenada a 25 anos de prisão por atravessar de Laos para a Tailândia com 1,5 comprimidos de metanfetamina (ou Yaba). Na mesma época, dois jovens foram condenados, cada um, à prisão perpétua por porte do mesmo Yaba comprimido, encontrado no carro que dirigiram da Tailândia para o Laos.[1]

Estes casos não são excepcionais para os padrões tailandeses. Os 24 presos que entrevistei em 2016 foram condenados a um total de 825 anos de prisão (e quatro sentenças de morte) por posse de 138 comprimidos de metanfetamina no total, representando uma sentença de prisão de seis anos para cada comprimido apreendido[2]. No contexto global, a Tailândia é um grande ponto fora da curva: a Comissão Global de Políticas sobre Drogas aponta as “consequências devastadoras” de “práticas agressivas de aplicação da lei contra os usuários de drogas” da Tailândia.[3]pesquisa recente do ICPR sobre a lei e a práticas de condenação em um grupo diverso de dez países também situou a abordagem da Tailândia para condenar a importação de drogas no extremo do espectro internacional. A pesquisa mostrou que o mesmo crime de importação de 400 gramas de heroína provavelmente resultaria em uma sentença de seis meses a 20 anos em nove dos países, enquanto na Tailândia a sentença seria a morte ou prisão perpétua.

O mistério de ‘yee-tok

Há pouca informação sobre como os magistrados tailandeses tomam as suas decisões. Isso não é surpreendente, visto que a Tailândia não tem diretrizes públicas de condenação ou processos de condenação transparentes, como é o caso em muitos outros países. Em vez disso, as condenações são orientadas pelo yee-tok , um documento informal e confidencial acessível apenas por juízes, exclusivo para cada tribunal, que não contém verificações formais de conformidade e equilíbrio.[4]

O Código Penal Tailandês prescreve uma série de fatores atenuantes que os magistrados podem, 'se apropriado', levar em consideração ao determinar se devem impor uma pena menor. Isso permite ao juiz reduzir a pena em até metade com base em fatores que incluem: idade da pessoa, capacidade mental, temperamento, falta de conhecimento da lei, provocação e admissão de culpa. No entanto, o Código permanece em grande parte silencioso sobre o modo pelo qual o tribunal deve primeiro determinar a pena a partir da faixa legal definida para o delito. Essa falta de orientação e de ampla discrição quanto à aplicação dos fatores atenuantes de dosimetria da pena, assim como a falta de transparência em como o yee-tok funciona, combinam-se para forçar os magistrados a se alinharem com imperativos políticos, como por exemplo a necessidade de dissuasão. Em suma, os magistrados tailandeses potencialmente apoiam e aceleram as cruzadas morais politicamente orientadas ao impor punições desproporcionalmente severas.    

O instrumento contundente do encarceramento em massa

A Tailândia tem travado uma guerra implacável contra as drogas e sua principal política se baseia no uso de punições severas como meio de dissuasão. Os esforços de controle de drogas têm priorizado a aplicação da lei: as estratégias de prevenção e tratamento têm apoiado diretamente os objetivos de manutenção da ordem, ao invés dos de saúde pública. Em paralelo, o sistema de justiça criminal tailandês tem tido dificuldade em fazer uma distinção entre usuários recreativos, pessoas dependentes de drogas, pequenos traficantes e aqueles do crime organizado. Os responsáveis pela manutenção da ordem têm sido encorajados a se concentrar no policiamento nas ruas e incentivados a mirar nas pessoas que usam drogas, através de aumentos salariais vinculados às quotas de prisão. Essas orientações têm resultados devastadores: dados de 2015 mostram que quase 40% de todas as prisões foram relacionadas às drogas[5]; e 80 % da população carcerária tailandesa em 2020 estava encarcerada por crimes relacionados às drogas[6]

Enquanto isso, o sistema prisional tailandês está superlotado há anos, operando com quase 150% de sua capacidade. Atualmente, a Tailândia tem a sexta maior população carcerária do mundo e a maior taxa de encarceramento feminino: cerca de 90 % das mulheres encarceradas cometeram infrações relacionadas a drogas[7]. Ainda assim, à medida que as prisões, as apreensões e o número de infratores aumentam, o mercado de drogas ilícitas na Tailândia cresce ainda mais.

A política de condenação à metanfetamina

Nesse ambiente repressivo, a criminalização desproporcional é particularmente evidente para crimes relacionados à metanfetamina. Pesquisas mostram que "as duras leis sobre drogas da Tailândia punem os delitos relacionados à metanfetamina quase 10 vezes mais severamente do que aqueles ligados à heroína, apesar de ambas as drogas estarem na mesma categoria."[8]

O ímpeto político por trás da guerra contra as drogas claramente influenciou as condenações tailandesas. Apesar das recentes reformas para reduzir o encarceramento relacionado às drogas[9], o ambiente político abrangente continua a favorecer a repressão em vez da reabilitação, saúde pública ou justiça proporcional. É difícil de afirmar se o yee-tok consagra os imperativos políticos ou não, dada à pouca transparência. No entanto, esta é uma suposição justa, visto que as penas por violação dos mesmos artigos do Código Penal diferem dependendo da substância em questão, e não de fatores atenuantes.

Respostas desproporcionalmente duras em relação às drogas – e particularmente à metanfetamina[10] – se refletem em todo o sistema de justiça criminal: de práticas e estratégias de policiamento, a penas altamente punitivas que levam a um encarceramento excessivo. Essas duras respostas são normalizadas pelo discurso inflamado de funcionários do governo, ecoado na mídia local. O modelo de 'tolerância zero' que a sociedade tailandesa em grande parte comprou tornou-se tão atraente que tem levado a infelizes e não intencionais consequências. As agendas políticas estão sendo priorizadas, ao invés da adesão aos princípios de proporcionalidade, paridade e transparência que deveriam reger todas as fases de aplicação e de execução das sanções penais.

Mais dados, mais transparência

É necessário realizar mais pesquisas sobre como surgem inconsistências nas sentenças para crimes relacionados às drogas na Tailândia, para dar base e evidências a uma revisão da política e dos instrumentos legais atuais – incluindo o yee-tok . Análises históricas – como a apresentada em um relatório recente publicado pelo Instituto de Justiça da Tailândia[11] – pode oferecer insights sobre como as sentenças para crimes relacionados à metanfetamina se tornaram mais punitivas ao longo do tempo em comparação com aquelas que envolvem outras drogas, apesar de se enquadrarem nos mesmos artigos do Código Penal. Da mesma forma, a experiência vivida pelos infratores encarcerados deve ser documentada por meio de estudos etnográficos, para destacar os devastadores impactos pessoais, familiares, sociais, culturais, jurídicos e financeiros de tais sentenças punitivas. 

A evidência global consistentemente mostra que a guerra contra as drogas falhou, que a criminalização dos delitos relacionados às drogas não produziu os resultados pretendidos, mas teve consequências indesejadas que causaram danos significativos à sociedade.

É chegada a hora da Tailândia parar sua cruzada moral fracassada, abandonar as práticas punitivistas e atualizar seus instrumentos legais para produzir sentenças justas e proporcionais, especialmente para os delitos ligados a drogas.

Traduzido por Maria Basso revisado por Mylena Couto


[1] Paungsawad, G. et al. 2016. “Bangkok 2016: From overly punitive to deeply humane policies” in Drugs and Alcohol Dependence, 167: 233-234. (https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S037687161630240X)
[2] Tanguay, P. and Ngammee, V. 6 January 2017. “Assessing the applicability of decriminalization components based on evidence and lessons learned for a sustainable national response to drugs in Thailand: Preliminary findings” presented at the Drug Education (Methamphetamine):  Social Skills for Harm Reduction Conference in Bangkok, Thailand.
[3] Global Commission on Drug Policy. 2012. The war on drugs and HIV/AIDS: How the criminalization of drug use fuels the global pandemic. (https://www.globalcommissionondrugs.org/wp-content/uploads/2012/03/GCDP_HIVAIDS_2012_EN.pdf
[4] Yampracha, S. 2016. Understanding Thai sentencing culture. (http://oleg.lib.strath.ac.uk/R/?func=dbin-jump-full&object_id=27087
[5] Royal Thai Police. 2017. National report; and ASEAN Narco. 2016. Drug monitoring report 2015. (https://aseannarco.oncb.go.th/ebook_print.php?ebook_id=B0058)
[6] Thailand Institute of Justice. 2021. Research on the Causes of Recidivism in Thailand. (http://fileserver.idpc.net/library/en-cdghnpwz0345.pdf)
[7] Jeffries, S., Chuenurah, C. and Russel, T. 2020. “Expectations and Experiences of Women Imprisoned for Drug Offending and Returning to Communities in Thailand: Understanding Women’s Pathways Into, Through, and Post-Imprisonment” in Laws9(2): 15; https://doi.org/10.3390/laws9020015. (https://www.mdpi.com/2075-471X/9/2/15)
[8] Paungsawad, G. et al. 2016. “Bangkok 2016: From overly punitive to deeply humane policies” in Drugs and Alcohol Dependence, 167: 233-234. (https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S037687161630240X)
[9] Akbar, P and Lai, G. 15 February 2017. “Thailand amends drug law to reduce penalties and ensure more proportionate sentencing” online at: https://idpc.net/blog/2017/02/thailand-amends-drug-law-to-reduce-penalties-and-ensure-more-proportionate-sentencing.
[10] As quantidades de limiar para crimes relacionados com as metanfetaminas foram reduzidas em 2002. O estatuto revisado indica que 375 mg de substância pura cria a presunção de intenção de distribuição, representando uma redução de 50 vezes a partir de 20 gramas. Ver Thailand Institute of Justice. 2021. Research on the Causes of Recidivism in Thailand. (http://fileserver.idpc.net/library/en-cdghnpwz0345.pdf)
[11] Thailand Institute of Justice, 2021: Research on the Causes of Recidivism in Thailand. (http://fileserver.idpc.net/library/en-cdghnpwz0345.pdf)

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