África: Governança informal e acesso à saúde na prisão

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Carole Berrih, jurista especializada em direito público, é diretora do centro Synergies Coopération[1]. Ela realiza estudos e avaliações de programas e projetos internacionais. Carole Berrih atua há 20 anos na área prisional e é doutoranda em direito público na Universidade Grenoble Alpes. Seus trabalhos de pesquisa se referem ao papel dos presos na manutenção da ordem nas prisões nigerianas.

Nesse texto, Carole aborda o impacto da governança informal no acesso aos cuidados médicos.

As regras internacionais sobre tratamento de presos dispõem que a administração é a única responsável pelo poder disciplinar na prisão. Contudo, autorizam a implementação de “sistemas baseados na autoadministração que contemplem atividades ou responsabilidades sociais, educativas ou desportivas […] sendo confiadas, sob supervisão, aos reclusos organizados em grupos, para fins de tratamento”. [2]

Na prática, muitas prisões, especialmente africanas, são reguladas por um sistema de governança dividido entre a administração oficial e uma organização informal hierarquizada e composta de detentos.  Esta organização excede as tarefas de autoadministração estabelecidas pelas regras internacionais. Vários historiadores revelam que o sistema que mobiliza os “superpresos”[3] para vigilância e a gestão das prisões já vigorava na época da colonização, para compensar os parcos recursos destinados às prisões coloniais. Hoje em dia, tal sistema se fortaleceu por causa da superpopulação de certas prisões e do número insuficiente de agentes penitenciários. Assim, a organização interna de várias prisões repousa sobre os presos: da revista à atribuição das celas, passando pela gestão dos serviços de saúde.

Tal sistema favorece ou limita aos presos o acesso à saúde? Meu trabalho de pesquisa, realizados em especial nas “áreas masculinas” de várias prisões africanas, mostram que a organização informal de presos permite, até certo ponto, compensar as deficiências da administração. Contudo, tal organização também pode contribuir para a implementação de um sistema discriminatório.

Um número de agentes penitenciários insuficiente face à superpopulação

O número de pessoas encarceradas na África não cessa de aumentar e com ele, a superlotação carcerária. As prisões de várias capitais africanas atingem taxas de ocupação superiores a 300%. Esse é o caso, em 2020, da prisão de Makala, em Kinshasa (570%), ou da prisão civil de Niamey (340%). Devido à superlotação, não é raro que os detentos durmam no chão, sentados, encostados uns aos outros, “de ponta cabeça” ou como “sardinhas em lata”, de acordo com a terminologia empregada no âmbito carcerário. Essa situação cria um forte impacto na saúde física e mental dos detentos: propagação de doenças infecciosas (tuberculose, VIH/Sida), forte prevalência de patologias dermatológicas (abcessos, escabiose), multiplicação dos casos de depressão. Ante a densidade carcerária, o número de agentes penitenciários da administração é insuficiente e impossibilita a organização do acesso dos presos às enfermarias. A administração conta, então, com a gestão interna dos detentos. Em teoria, o sistema funciona assim: em cada cela, um “chefe de cela” tem a tarefa de anotar os nomes dos doentes; na manhã do dia seguinte, esses dados são transmitidos à cadeia hierárquica e os detentos doentes podem, então, ser admitidos na enfermaria para tratamento. O que é observado é que o sistema não funciona da mesma maneira para todos os presos.

A importância do “capital social” no acesso aos serviços de saúde

Certas enfermarias encontram-se na área prisional, mas fora do setor de detenção. Para entrar nelas, os presos doentes devem cruzar o portão do setor de detenção e, assim, passar necessariamente pelos representantes do sistema informal. Na prisão civil de Niamey, os “superpresos” limitam o acesso à enfermaria a 10 ou 20 pessoas no máximo por dia, por “razões de segurança”. De acordo com os presos, aqueles que têm “conhecidos” são admitidos no serviço de saúde (em outras palavras, as pessoas que gozam da confiança dos “superpresos”). A menos que apresentem uma patologia grave, os presos com capital social ou relacional limitado às vezes esperam várias semanas antes de ter acesso à enfermaria. Alguns chegam a simular desmaios para ter acesso a um profissional de saúde.

Geralmente, as verbas destinadas a medicamentos das enfermarias são insuficientes para atender às necessidades. Às vezes, são  restritas a alguns medicamentos básicos, como o paracetamol. Na RDC, no Níger, no Chade ou em Camarões, os profissionais de saúde fornecem receitas para os presos obterem os medicamentos fora da prisão, através de suas famílias. Em algumas prisões, no entanto, os “superpresos” proíbem a entrada de medicamentos vindos de fora, por medo de que possam ser drogas. Tudo, portanto, depende da confiança depositada nos presos pelos representantes do sistema de governança informal.

A mudança "de baixo para cima"

A organização informal permite que a prisão funcione apesar do número muito reduzido de agentes penitenciários. No entanto, esse sistema apresenta grandes falhas, principalmente no que diz respeito aos presos "comuns" que contam com um sistema de laços pouco desenvolvido.

Deveriam então ser iniciadas novas reformas do quadro das regras legais? As disparidades entre as regras formais e as práticas não param de crescer a medida em que são adotados novos textos. Em vez de se adotarem novos textos que não serão implementados, seria sensato buscar desempenhar um papel ativo quanto aos obstáculos concretos ao acesso à saúde na prisão. Uma lógica “de baixo para cima” levaria a medidas adaptadas a cada contexto, indo para além da abordagem puramente normativa. Para isso, Estados e protagonistas do setor carcerário poderiam basear-se nos trabalhos de pesquisa sobre os modelos de governança e a análise de políticas públicas na África, que vêm se multiplicando ao longo da última década.

Traduzido por Nilma Campagnaro, revisado por Martina Maigret


[1] Synergies Coopération é um centro de pesquisa e formação, criado em 2013, que atua no âmbito das prisões, da justiça penal e dos direitos humanos. O centro realiza missões de pesquisa, avaliações e treinamento para instituições internacionais e regionais e ONGs.
[2] Regra 40 alínea 2, Regras Nelson Mandela
[3] Termo utilizado em Camarões (África), inspirado do francês “super-détenu” de Regine Ngono Bounoungou. NGONO BOUNOUNGOU Regine, A reforma do sistema penitenciário camaronês. De acordo com os países, os “superprisioneiros” apresentam nomes diversos, como capita geral na RDC (República Democrática do Congo), sarki no Níger, ou shawish no Líbano. Os “superpresos” ou “superdetentos” são prisioneiros que se destacam pela sua antiguidade no sistema prisional, bem como pela sua influência ou domínio sobre os outros detentos. Eles concentram seu poder pela confiança que tem dos agentes penitenciários e da administração prisional. (KINOMBE Charles Kakule, in « La surpopulation carcérale dans les prisons congolaises : causes, effets et pistes de solutions », pp. 602 -630) 3 Ver, entre outros, D. Darbon, O. Provini, S. Schlimmer, R. Nakanabo Diallo, « Un état de la littérature sur l'analyse des politiques publiques en Afrique », in Research Papers AFD, n° 98, 2019 ; T. De Herdt e JP. Olivier de Sardan, “Real gouvernance and practical norms in Sub-Saharan Africa: the games of the rules”, Routledge, 2015. Embora eu não concorde necessariamente com as recomendações, ver também S.L. Birane Faye, « Comprendre de l’intérieur le fonctionnement des prisons pour des politiques carcérales adaptées », Notas de política de CODESRIA, n ° 2, 2017.

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