Índia: audiências remotas e direitos dos acusados

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Madhurima Dhanuka é Chefe do Programa de Reformas Penitenciárias e Acesso à Justiça na Iniciativa de Direitos Humanos da Commonwealth (Commonwealth Human Rights Initiative, CHRI) na Índia. Nesse texto, Madhurima aborda o impacto das audiências remotas no direito à um processo justo.

A pandemia tem impactado profundamente o acesso à justiça e aos direitos dos réus, tanto na Índia quanto ao redor do mundo. Restrições, como lockdowns e toques de recolher impostos pelo governo, levaram ao fechamento de tribunais e a dificuldades em continuar com as audiências de forma presencial. Judiciários em todo o mundo foram forçados a reconsiderar os meios de fazer justiça, e estão dependendo cada vez mais de audiências remotas para continuar seu funcionamento. Embora saudado por muitos no judiciário indiano, por juristas e pelo governo como uma tendência espetacular, o impacto de audiências remotas sobre os direitos dos acusados de receber um julgamento justo tem sido pouco discutido.

A atividade remota cada vez mais estabelecida

Na Índia, o uso de audiências remotas tem sido desenvolvido de maneira ad hoc. Em 2003, o Supremo Tribunal permitiu pela primeira vez o depoimento de testemunhas à distância. No ano seguinte, foi constituído um “comitê online” da Suprema Corte, que elaborou uma Política Nacional e Plano de Ação para uso da informação, comunicação e tecnologia em juízo. A base legal para audiências remotas em processos criminais foi estabelecida em 2008, segundo a qual uso de videoconferências seria limitado às audiências de custódia (audiências que ocorrem entre a primeira aparição perante um magistrado e a apresentação formal da acusação).

Na prática, os tribunais têm lentamente estendido o uso de audiências remotas a vários estágios dos procedimentos judiciais. Em 2020, o comitê elaborou o Modelo de Regras de Videoconferência para Tribunais, que permitia o uso de audiências remotas em todas as etapas do processo. Surpreendentemente, essas regras contêm referências insignificantes sobre os direitos a um julgamento justo.

Antes da pandemia, apenas o acusado assistia aos procedimentos remotamente, da prisão, enquanto todos os outros participantes se encontravam no tribunal. Hoje, as audiências remotas foram ampliadas ainda mais, com cada parte potencialmente apta a assistir a audiências de locais diferentes.

O acusado desconectado de seus direitos

A Iniciativa de Direitos Humanos da Commonwealth (CHRI) analisou as implicações das audiências realizadas por videoconferência sobre os direitos das pessoas acusadas (especialmente para quem participa de tais processos já estando no cárcere), em seu recente relatório 'Desconectado: Videoconferência e Direitos a Julgamento Justo'. Por meio de entrevistas realizadas com 20 advogados criminais e 10 oficiais de justiça, o relatório destaca as deficiências sistêmicas presentes em audiências remotas, tanto antes quanto durante a pandemia. As experiências de advogados e oficiais de justiça documentadas no relatório trouxeram à tona graves violações dos direitos a um julgamento justo durante audiências remotas. Tais direitos infringidos incluem: o direito de participar efetivamente das audiências; o direito a um advogado; o direito à comunicação privilegiada; o direito de desafiar a detenção ilegal e violência sob custódia.

O estudo realizado pelo CHRI aconselha cautela e moderação no uso de audiências remotas para processos criminais importantes. Procedimentos como primeira prisão preventiva, prisão preventiva policial, enquadramento da acusação, registro de provas de testemunhas-chave, e argumentos finais sobre a condenação e a sentença devem ser conduzidos apenas em audiências presenciais. O estudo sugere que a necessidade de diretrizes sólidas que limitem o uso de audiências remotas a etapas específicas do processo penal, e também delineia salvaguardas de proteção dos direitos das pessoas acusadas.

Advogando no mundo pós-pandemia

Com base nas conclusões do relatório, espera-se que a defesa contínua dos direitos das pessoas acusadas - envolvendo diferentes partes interessadas -, permita uma deliberação séria sobre as preocupações identificadas a respeito de audiências à distância. As partes interessadas incluem o “comitê online” da Suprema Corte da Índia, departamentos penitenciários, o sistema judiciário, associações de advogados, funcionários do serviço jurídico, entre outros. Deve-se ressaltar a importância de conscientizar os acusados a respeito das audiências remotas através de posters e vídeos. Os advogados também devem ser encorajados a levantar preocupações onde os direitos são violados e buscar a reparação apropriada para seus clientes.

A conveniência nunca deve prevalecer sobre o respeito de direitos, mesmo durante uma emergência sanitária global. Não deve haver nenhum fator de equilíbrio em jogo quando se trata de defender os direitos a um julgamento justo, especialmente aqueles que podem impactar a vida e a liberdade de uma pessoa. É fundamental que os servidores inseridos no sistema reconheçam e defendam esses direitos. Um documento de orientação emitido recentemente pela Comissão Internacional de Juristas também enfatiza que: "embora as instituições do Estado, incluindo o judiciário e os serviços judiciais, devam adotar medidas para proteger o direito à vida e o direito à saúde durante emergências sanitárias, tais medidas também devem respeitar os requisitos de legalidade, não discriminação, necessidade e proporcionalidade".

Espera-se que, à medida que avançamos para um mundo pós-pandêmico, aprendamos com essas experiências e abordemos questões que virão a surgir a respeito da realização de audiências remotas.

Traduzido por Luiza Mantovani e revisado por Marianne Heinisch

 

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