Brasil: a incessante luta dos familiares de presos

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Maria Teresa dos Santos preside a Associação de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade no Estado de Minas Gerais. Dois dos seus filhos já foram presos. Um deles se encontra atualmente em prisão domiciliar, devido à pandemia de Covid-19 (Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça). Maria Teresa é também articuladora da Frente Estadual pelo Desencarceramento em Minas Gerais.

Em setembro 2020, Prison Insider conversou com ela.

Prison Insider: Visitas, entrega de kits, troca de cartas fazem parte do cotidiano de comunicação entre as pessoas presas e seus familiares. O que mudou desde que a pandemia começou? Quais as dificuldades que os familiares têm encontrado?

Maria Teresa: A visita social, a visita íntima e a entrega do kit para os presos foram suspensas no mês de março de 2020 por 30 dias. Em abril, foi prorrogada a suspensão da visita por mais 30 dias e foi liberado que os familiares mandassem o Sedex com o material de higiene pessoal. Em maio, algumas unidades começaram a permitir que no Sedex fossem enviados os itens que eram antes eram entregues no kit. O que temos visto é que maioria das unidades têm devolvido o Sedex dos familiares: quando o correio atrasa e o Sedex chega depois do dia da entrega, quando tem algum item fora da lista autorizada, quando o preso é transferido e a unidade prisional não avisa à família... Ou outras vezes o Sedex é devolvido sem nenhum motivo, o agente que recebe cisma “hoje eu não quero receber, devolve”.  Em algumas unidades a gente não tem esse tipo de problema, mas essa devolução é muito grande nas unidades onde os diretores não estão nem aí para o que acontece dentro do cárcere. Apesar de várias reclamações e vários ofícios, a Secretaria não tem tomado nenhuma providência contra isso

As visitas foram suspensas para o Covid não chegar dentro das unidades, mas o Covid chegou. A cada 30 dias, o prazo da suspensão da visita é prorrogado, numa reunião que é feita entre o Governador, o Secretário de Segurança Pública, o Chefe de Defensoria Pública, o Procurador Geral do Estado, e o presidente do Tribunal de Justiça. Em nenhum momento eles ouvem um familiar sobre isso. Nenhum familiar e nenhum médico participam do Comitê do Covid.

Depois de muita reclamação, o DEPEN (administração penitenciária) começou organizar visitas virtuais. Algumas unidades prisionais tem essa possibilidade de vídeo-chamadas, mas a gente bate na tecla de que visita virtual não é visita. O preso não tem privacidade para conversar com seu familiar: ao lado dele fica algum inspetor técnico da unidade prisional, atrás dele fica dois agentes prisionais. Qualquer coisa que o preso fala que não esteja de acordo, a chamada cai e não é retornada depois. As pessoas que não têm uma internet boa não conseguem receber a tal da vídeo-chamada. Eles preferiram fazer um sistema todo complicado e os familiares muitas vezes não conseguem baixar o aplicativo.

Alguns familiares percebem os presos chorando muito durante as chamadas. Eles dizem que estão bem, mas a gente sabe que não estão só de ouvir a voz deles. A gente vê que não estão bem. Já teve familiar que presenciou o preso com o olho roxo e que sabe que foi um ‘couro’ que ele tomou dentro da unidade. E por vídeo-chamada não dá para fazer nada por eles.

As cartas que os familiares têm enviado para os presos nesse momento de pandemia, e que os presos têm escrito para os familiares, também não têm chegado. Tem familiar que agora, nesses últimos dias, recebeu carta que está datada de março, de abril. Essas cartas estavam paradas nas unidades. O que a gente tem percebido é uma falta de interesse das pessoas que são responsáveis. E a gente pensa também que muitas cartas estão sendo censuradas e não enviadas, porque os presos provavelmente têm relatado nas cartas as torturas físicas, psicológicas, a falta de alimentação e de água, e de saúde que eles estão passando dentro do sistema prisional.

Para piorar, em meio a pandemia, enquanto a Organização Mundial de Saúde recomenda o isolamento, os presos tão sendo transferidos de uma cidade para outra toda semana.

E essas transferências têm esparramado o Covid de uma unidade para outra: o preso que tá infectado numa unidade é mandado para outra unidade, e aí os presos daquela unidade de repente aparecem doentes. A perversidade é tamanha que eles não respeitam a lei de execução penal, que é clara: o preso tem que cumprir pena próximo da sua família para que ele possa ser assistido por ela. Os presos estão sendo levados para cidades muito longe dos seus familiares, para municípios onde nem ele nem a família não têm vínculo nenhum.

PI. Diante dessas dificuldades, como as famílias têm conseguido se informar sobre o estado de saúde do seu ente querido e sobre o que tem acontecido dentro do cárcere?

Maria Teresa: A informação sobre os privados de liberdade tem chegado para gente de três formas. Uma é através dos advogados, quando eles conseguem adentrar a unidade para atender os seus clientes. Quando o preso é atendido pelo seu advogado no parlatório, ele consegue falar do o que está acontecendo dentro da unidade, e às vezes consegue até mandar recado de um outro preso para a família. Mas nas unidades em que os advogados também não são autorizados a entrar, eles também têm que se comunicar com o preso virtualmente. Isso faz com que o preso não tenha privacidade de conversar com o seu advogado e dificulta o acesso dos familiares à informação. Com a chamada virtual, ele não pode, não tem a liberdade de ter essa comunicação livre com o seu defensor.

Outra forma é através dos meninos que estão sendo postos em liberdade que têm gravado áudios relatando como que está a situação lá dentro do cárcere.

A gente também conta com a informação que chega via alguns agentes prisionais que estão em desacordo com as atrocidades tem acontecido dentro do sistema, e que às vezes nos dão notícia do que está acontecendo dentro da unidade.

PI. Associações de familiares têm se posicionado sobre a suspensão das visitas presenciais. O que significa a entrada das famílias e da sociedade civil no cárcere?

Maria Teresa: Nós, famílias dos presos, queremos o direito de visita presencial, mesmo com um protocolo que siga as orientações da Organização Mundial da Saúde. A suspensão já não tem mais justificativa, porque a cidade está aberta: os bares, as lojas, o shopping... Essa suspensão das visitas agravou o quadro de agressões físicas dos agentes do grupo de intervenção rápida contra os privados de liberdade.

Nós estamos vivendo um tempo de absurdos tão grande que no meio de uma pandemia de Covid-19 tem diretor de unidade prisional fechando a ventana da cela (buracos por onde entra ar dentro da cela) pro preso não ter contato com o mundo exterior. Porque quando a ventana, esse buraco, permite que quando o preso grite lá de dentro das unidades para as famílias que estão do lado de fora ouvirem, como aconteceu no presídio de Itaba.

Nós estamos vivendo um tempo de uma administração perversa no sistema prisional brasileiro. As famílias, sabendo disso, não podem ter a tranquilidade de se alimentar, de se deitar, de levantar, de dormir, sabendo que o seu familiar privado de liberdade está sendo vítima de atrocidades.

Eu tenho visto mães completamente desesperadas com a falta de notícias do filho. Para nós, mulheres, ter um filho encarcerado é uma dor que ninguém consegue entender. A sociedade não se responsabiliza pelo ato que os nossos filhos cometem em desacordo com a lei. Mas essa sociedade não nos enxerga como mulheres, como mães, como pessoas que têm carinho, que tem afeto, que tem amor pelos seus filhos, e que, como mãe, ela não abandona. Essa falta de comunicação tem causado um incômodo e um adoecimento muito grande nas mulheres.

É preciso a retomada das visitas, porque quando o familiar vai visitar, ele sai com o relato de tudo de ruim que tá acontecendo dentro do cárcere. É preciso também que os Conselhos da Comunidade, o Ministério Público, a Defensoria Pública, as Comissões de assuntos carcerários e de direitos humanos da OAB possam entrar no cárcere para fazer as fiscalizações, para relatar às autoridades competentes as mazelas que estão lá dentro, que não são poucas. A gente insiste nesse ponto porque é a visita, é o entrar da sociedade dentro do cárcere, que minimiza o tanto de agressões físicas que os presos sofrem por parte de quem deveria cuidar deles.

O Tribunal de Justiça se mantém calado e inerte diante dessa situação. Os promotores e os juízes são muito bons em pedir a condenação dos rapazes que estão em conflito com a lei, mas não tem peito de chegar para o Secretário de Segurança Pública, para o Diretor do Departamento Penitenciário e cobrar deles que eles cumpram a lei de execução. Se existe uma lei de execução, o poder judiciário deveria cobrar e fiscalizar que essa lei fosse cumprida. E eles cobram o que são os deveres dos presos, mas os direitos são totalmente negados.

Nós temos um poder judiciário que se preocupa muito em condenar à pena privativa de liberdade as pessoas periféricas, as pessoas negras. Os nossos promotores e juízes das varas criminais não conhecem o cárcere, eles não sabem para onde que eles estão enviados as pessoas. Todo promotor e todo juiz deveriam fazer um estágio no cárcere para saber o que que eles estão fazendo com juventude mandada para aquele lugar. Um lugar de sofrimento e de dor. E o cárcere não foi criado para isso.

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