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Gilbert Mitullah Omware é advogado de defesa criminal pro bono e pesquisador de Direito Penal com foco no direito à representação legal financiada pelo Estado. Atualmente, ele atua como sócio-gerente da Mitullah, Shako and Associates Advocates LLP. Nesse texto, Gilbert aborda as injustiças do sistema penal queniano.
Imagine:
Você é um jovem trabalhador, sem instrução, mas ainda com esperança de um futuro melhor. Sai de casa todos os dias às 6 da manhã para procurar trabalho. Volta para casa uma noite, por volta das 19h, com apenas cinquenta xelins quenianos (cerca de 50 centavos de dólar americano) em mãos. Isso é tudo o que tem para si e para sua família naquele dia. Você sai para comprar ovos e encontra a polícia que patrulha a área. Eles te mandam deitar e, após um rápido interrogatório e revista corporal, te mandam juntar-se a um grupo de outros jovens já detidos. Todos se amontoam agachados, o grupo vai aumentando, e logo vocês já são quase vinte. Quando a polícia se cansa, todos vão para a delegacia, onde passarão a noite. Não há explicação quanto ao motivo de suas prisões, exceto o fato de serem todos jovens fora de casa depois das 19h.
Dois anos depois, você se encontra em prisão preventiva, acusado de “preparação para cometer um crime”, com uma faca plantada em você pela polícia, e “porte de entorpecentes” - cinco rolos de bhang que também nunca foram seus. Você foi acusado desses crimes com outro jovem – alguém que não conhecia antes de chegar à delegacia. Não pode pagar a fiança porque o valor é de 100.000 xelins quenianos (aproximadamente US$ 925), e você mal consegue pagar seu aluguel, que é de 3.000 xelins quenianos (aproximadamente US$ 27) por mês.
Seu caso jamais foi a julgamento porque os policiais que o prenderam nunca compareceram ao tribunal para apresentar provas. Você nunca se encontrou com um advogado - e provavelmente jamais o fará - pois são muito caros, e aqueles que oferecem serviços gratuitos só o fazem para menores. O seu perfil não se encaixa. Isso te forçará a negociar sua saída da prisão. Seria melhor receber uma condenação criminal do que ficar na prisão preventiva, um limbo infernal, onde seu destino está sempre pendente, indeterminado. Conforme o acordo judicial, você irá cumprir uma sentença de dois anos de liberdade condicional para que “todos possam sair ganhando”. A acusação obtém uma condenação, o magistrado encerra seu caso e arquiva a declaração, e você pode voltar para casa, grato por ter saído da prisão, um lugar onde nunca deveria ter estado.
Agora pare de imaginar, porque esse cenário diabólico é a vida de milhares de jovens quenianos em prisão preventiva.
Jovens e pobres permanecem desprotegidos
O sistema de justiça criminal do Quênia está repleto, em sua maioria, de presos jovens, indigentes, com baixa escolaridade, sem nenhuma compreensão do processo de justiça criminal e sem representação legal. Embora o direito à representação seja agora garantido pelo Artigo 50(2)(h), ele não existia antes da promulgação da Constituição em 2010, e ainda não existe na prática para uma maioria de suspeitos e réus. Consequentemente, eles não usufruem plenamente de seus direitos de acesso à justiça e a um julgamento justo, levando muitos a se declarar culpados ou a negociar um acordo de confissão de culpa para que sejam libertados. A prisão preventiva pode, portanto, funcionar como uma força coercitiva para obter condenações com base em investigações de má qualidade, que não podem ser contestadas por meio de defesa legal eficaz. Isso pode levar a uma subversão da justiça, o que que enfraquece o sistema de justiça criminal e, com ele, o estado de direito.
Embora a Constituição garanta o direito à fiança, a menos que haja razões imperiosas para não libertar uma pessoa acusada, a Auditoria de Justiça Criminal realizada em 2016 pela Legal Resources Foundation Trust, em parceria com o Conselho Nacional de Administração de Justiça e RODI Quênia, concluiu que 90% dos réus não podem pagar fiança e, consequentemente, estão sob prisão preventiva. Estatisticamente, os termos de fiança estabelecidos pelos tribunais quenianos não são congruentes com as circunstâncias econômicas da maioria dos réus, o que tornou a prisão preventiva para indigentes uma regra, e não exceção.
Injustiça Kafkiana
Infelizmente, essa vulnerabilidade manifesta – e contínua – a erros judiciais enfrentados por aqueles em prisão preventiva não recebeu nenhuma resposta regulatória ou judicial adequada. A única maneira de assegurar o direito a um julgamento justo é garantir representação legal financiada pelo Estado para os detidos provisórios marginalizados, indigentes e vulneráveis. A pesquisa mostra que 86% dos presos preventivos no Quênia não têm acesso à representação legal, apesar da garantia prevista na Lei de Assistência Jurídica de 2016. Essa lei foi instituída para dar vida ao direito constitucional de representação legal financiado pelo Estado, estabelecendo os mecanismos necessários à sua concretização: a saber, o Serviço Nacional de Apoio Judiciário e o Fundo de Apoio Judiciário. Infelizmente, nenhum dos dois funcionou plenamente desde o início da lei. O Serviço Nacional de Assistência Jurídica está significativamente atrasado, deixando milhares de presos sofrendo em instituições de prisão preventiva, enfrentando barreiras intransponíveis para cumprir os termos de fiança. Pessoas vulneráveis, que não entendem o sistema e nunca interagiram com ele, são apanhadas na mira e inevitavelmente pagam um preço alto.
Todos os dias, eu entro no tribunal e encontro pessoas desesperadas por assistência legal e jurídica, mas que não têm acesso a elas. Pessoas condenadas que teriam sido absolvidas se representadas legalmente. Pessoas que acabaram sendo absolvidas, mas lutando contra a ansiedade de voltar à estaca zero depois de pelo menos um ano na prisão preventiva, o que poderia ter sido evitado com representação legal. Pessoas que nos lembram de que os eventos ficcionais distópicos na vida de Josef K. em O Julgamento, de Franz Kafka, realmente poderiam pular dos livros e se tornar realidade. Motivados por tal injustiça, os advogados pro bono intervêm para ajudar, mas enfrentam muitos desafios relacionados ao sistema e à sua própria capacidade.
O Quênia tem repetidamente reconhecido a extrema necessidade de uma reforma da justiça criminal, e reconhecido também que o sistema atual é especialmente contra os pobres e jovens das áreas urbanas. David Maraga (Presidente do Supremo Tribunal aposentado) criou o Comitê Nacional de Reformas da Justiça Criminal em janeiro de 2018, com a atribuição de revisar o setor de forma abrangente e fazer recomendações para impulsionar sua remodelação. Um comitê foi estabelecido para supervisionar a implementação das Diretrizes da Política de Fiança. Se devidamente financiadas, essas reformas produziriam um sistema eficiente e bem coordenado, garantindo justiça para todos, em todas as fases.
Negociações de pena importadas
O desafio que essas reformas bem-intencionadas da justiça criminal enfrentam agora é que os órgãos estaduais, incluindo o Judiciário e o Gabinete do Diretor do Ministério Público (ODPP – Office of the Director of Public Prosecutions), estão sem o financiamento governamental tão necessário devido a outros programas (políticos e nacionais) concorrentes. Isso os levou a buscar fontes externas de financiamento, como agências de assistência internacionais ou governos estrangeiros, com resultados variados. Um exemplo disso é um esquema para promover o uso de negociação e isenção de pena no Quênia, patrocinado pelo governo dos Estados Unidos e implementado por meio do ODPP. Tal esquema levou promotores a negociar acordos com réus indigentes não representados e que não têm ideia do que seja uma negociação de confissão, além de deixá-los sair rapidamente da prisão preventiva se “ganharem” uma sentença não privativa de liberdade em troca de uma confissão de culpa. Na prática, esse processo acontece muitas vezes sem advogados de defesa, de modo que presos vulneráveis aguardando julgamento podem acabar aceitando acordos injustos apenas para sair da prisão preventiva – e sem garantias. Com efeito, a escassez de financiamento adequado para a reforma da justiça criminal resultou na importação de políticas e práticas de outras jurisdições sem pensar em sua adequação e sem garantias suficientes para os vulneráveis cujos direitos estão em jogo.
Soluções rápidas não são a resposta
Para consertar o sistema de justiça criminal do Quênia, o discurso precisa sair das salas de reunião e centros de conferência e passar para os assentamentos urbanos informais - onde ocorre a maioria das prisões e o policiamento excessivo -, para as delegacias de polícia onde milhares são injustamente detidos e abusados, assim como para as salas do tribunal onde as esperanças por justiça de vítimas ou suspeitos são rotineiramente frustradas. É ali que o sistema de justiça criminal do Quênia deve se transformar – em discussão com os mais afetados por ele. A inclinação de fazer o mínimo e encontrar soluções rápidas para um sistema de justiça criminal que está implodindo não fará nada para melhorá-lo. Devemos todos garantir que este não seja o futuro da justiça criminal no Quênia.
Traduzido por Fabiana Lavor e revisado por Marianne Heinisch