Reumanizar a justiça preventiva

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Jago Russell é Diretor-Geral ONG de direitos humanos Fair Trials. Antes de atuar na Fair Trials, Jago trabalhou como especialista de políticas sociais na organização Liberty e como especialista jurídico no Parlamento Britânico. Jago é advogado, tem publicações e dá palestras sobre questões ligadas à justiça criminal e a direitos humanos. Nessa texto, Jago aborda as consequências da justiça preventiva.

Quando os réus são submetidos à prisão preventiva, eles têm maior chance de serem condenados, de declararem culpa, receberem pena de prisão, e terem que cumprir sentenças mais longas. A decisão de deter ou soltar alguém antes de ser julgado pode mudar  a vida das pessoas. No entanto, a forma como estas decisões são tomadas geralmente demonstra o desprezo pela vida humana. A cada mudança guiada pela busca de eficiência, sistemas legais subfinanciados e sobrecarregados se transformam ainda mais em uma eficaz máquina de prisões. Os acusados estão sendo reduzidos a meras unidades inanimadas a serem processadas, e a abstrações e riscos a serem gerenciados.

Impacto de uma defesa zelosa

O impacto que tem uma boa defesa no início do processo não é nenhuma surpresa. Afinal, advogados de defesa são os profissionais do sistema que existem para advogar pelo réu. Uma pesquisa sobre representação legal em audiências de custódia de Nova York mostrou uma redução de 20% a 30% nos casos de prisão preventiva quando é proporcionado uma representação legal. E se o acusado tem um advogado ainda mais cedo no processo, isso pode interromper o maquinário de justiça criminal antes mesmo de ele ser ativado. O Estudo da First Defense (iniciativa comunitária de Chicago) constatou que o acesso a um advogado durante a custódia policial reduz significativamente o tempo de prisão.

Lições positivas também podem ser aprendidas com a defesa holística. Uma abordagem centrada no cliente, interdisciplinar, permite que os advogados entendam melhor os acusados e suas necessidades. Isso aumenta a probabilidade de liberdade provisória em aproximadamente 9%, como evidencia as pesquisas. A defesa participativa também pode enriquecer o conhecimento do advogado sobre seu cliente enquanto um ser humano tridimensional, pois ela organiza a família e a comunidade do réu para ajudar e instigar os advogados. Porém, mesmo sem abordagens revolucionárias como essas, existe muito que pode ser feito para melhorar a defesa em pedidos de liberdade provisória. Nossa própria pesquisa mostrou que, muitas vezes, os advogados de defesa não comparecem às audiências de custódia (geralmente mal pagas, e vistas com menos prestígio do que os julgamentos), e que a atuação costuma ser passiva ou não existente quando os advogados aparecem.

A defesa zelosa é possivelmente a melhor maneira de contestar a cultura judicial e do Ministério Público que parece programada para prender. Promotores progressistas eleitos estão atualmente apoiando a  reforma da justiça preventiva nos Estados Unidos, mas isso é difícil de ser traduzido para sistemas legais que têm juízes e promotores de carreira. Nesses sistemas, os princípios rigidamente protegidos de independência e imparcialidade do Poder Judiciário tornam praticamente impossível discutir culturas problemáticas, arraigadas e profundas, que podem predeterminar como juízes e promotores realizam seu trabalho.

Mentalidades contestáveis

Em muitos países, cronogramas de audiências guiados por uma busca por eficiência estão moldados pela indiferença ao enorme custo humano da prisão preventiva. Um estudo sobre a tomada de decisão na Inglaterra e no País de Gales, por exemplo, constatou que os tribunais estavam decidindo em favor da prisão em menos de cinco minutos na maioria dos casos. O relatório do Institute for Crime & Justice Policy Research (ICPR) sobre prisão preventiva revelou que, na Índia, “os magistrados estão tão sobrecarregados que não conseguem se envolver com os fatos ou com as pessoas a sua frente, e quase não levantam os olhos para ver quem é o acusado”. E na África do Sul “(o tribunal) não tem tempo para aplicar a lei (…), eles querem passar de um caso a outro o mais rápido possível”.

Também precisamos examinar o quanto fatores externos afetam a disposição de um juiz em ordenar uma soltura, como a cobertura da imprensa sobre crimes ou a expectativa de que os magistrados tenham que atuar em muitos casos sem intervalo entre eles. Um reconhecido estudo realizado em Israel evidenciou que juízes estão mais propensos a decidir a favor do acusado logo depois do almoço.

A reforma da prisão preventiva costuma ser abordada do ponto de vista da transformação jurídica (ao invés de cultural ou do sistema), muitas vezes na forma de supervisões extrajudiciais ou na limitação de justificativas para encarceramento. Mesmo que sejam importantes, essas reformas não chegam à raiz do problema. Audiências extras podem se tornar apenas outro tipo de procedimento em que juízes carimbam decisões predeterminadas. Definições mais estritas para o uso da prisão podem ser traduzidas como um novo padrão de linguagem para justificá-la, quando a razão não oficial continua a mesma — “eles provavelmente fizeram isso” ou “eu tenho medo de soltar pessoas assim”. Esse tipo de mentalidade não muda com reformas legais quando os tomadores de decisão não conseguem enxergar o custo humano da prisão preventiva. 

Tendências globais retrógradas no âmbito da justiça criminal dificultam ainda mais a tentativa de humanizar as decisões relacionadas à prisão preventiva. Em resposta à desigualdade em pagamentos de fiança, por exemplo, muitos juristas americanos passaram a utilizar ferramentas de avaliação de risco, que são receitas matematicamente perfeitas para organizar pessoas em categorias. Embora projetadas para oferecer uma base científica às deliberações, agora elas são conhecidas por agravar a injustiça racial, pois recorrem a dados penais que refletem o racismo estrutural e a desigualdade institucionalizada. Temo que, se falharmos em compartilhar as lições aprendidas nos Estados Unidos, algoritmos avaliadores de risco serão divulgados em outras partes do mundo como uma “solução” tecnológica para prisões preventivas.

Mantendo as pessoas em primeiro lugar

A pandemia de Covid-19 apresentou novos desafios à justiça preventiva. Apesar dos esforços de ONGs como a Fair Trials, as pessoas detidas que aguardam julgamento raramente são beneficiadas com planos de liberdade provisória para amenizar a superlotação e a redução de risco de contágio. Na verdade, os números parecem estar aumentando. Na Inglaterra e no País de Gales, por exemplo, quase um terço das pessoas detidas no final de 2020 ficaram presas mais tempo do que o limite legal. A frequência de audiências de custódia realizadas por telefone ou por conversa em vídeo aumentou, o que corre o risco de se tornar o procedimento padrão devido à alta procura por soluções tecnológicas que ofereçam maior eficiência.  Quão mais difícil será enxergar o réu como um ser humano se ele é visto pelo Zoom ao invés de em carne e osso? Existe um motivo para que essas audiências sejam descendentes da antiga salvaguarda legal “Habeas corpus” — literalmente, “ter um corpo” (de um detento trazido até nós). Estudos do Reino Unido (veja aqui e aqui) demonstraram que audiências remotas podem interferir no direito dos réus a terem acesso a assistência legal e a participarem efetivamente durante suas audições, o que, de maneira desproporcional, pode resultar em penas privativas de liberdade.

Nossos sistemas legais precisam abordar a prisão preventiva sob as lentes dos direitos humanos —as pessoas as quais o futuro e a liberdade estão sendo decididos devem vir em primeiro lugar. Com tantos aspectos envolvidos na reforma da justiça criminal, as respostas não são simples e, em última instância, apontam para a necessidade de redimensioná-la de maneira que tenha o tempo e os recursos adequados para, de fato, fazer justiça. Esse deveria ser o foco das iniciativas pela reforma jurídica — eliminar o encarceramento quando as ofensas são puníveis com sentenças de curta duração ou, ainda melhor, manter as pessoas fora do sistema (veja a campanha Africana pela descriminalização de infrações menores). Se falharmos em reumanizar a justiça preventiva, nossos sistemas legais vão continuar a humilhar, encarcerar e discriminar milhões de pessoas que nem deveriam estar presas.

Traduzido por Mariana Dutra Della Giustina por revisado por Letícia Gomes

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